Cronologia
do espetáculo de horror
Por Guto
Rodriguess*
O dia
está quase amanhecendo na pequena província de Toledo, parte central da
Espanha. O ano é 1492. É um domingo frio de abril. Pessoas de todas as cidades
da Espanha já começam a se amontoar em torno da pequena praça central da
cidade. Carpinteiros terminam os últimos preparativos para a “festa” que
acontecerá logo mais. São pessoas de todas as idades. Homens, mulheres e
crianças. Alguns caminharam algumas centenas de quilômetros para estar ali
aquele dia. Inquietam-se ao lado do palco principal, à espera do “espetáculo”.
Quando
o Sol já está a pique, o número de pessoas chega a alguns milhares. A praça
está completamente lotada. Como nos dias de hoje, há os “vendedores
ambulantes”, negociantes de todos os tipos, que aproveitam o evento público,
que é gratuito, para fazer algum dinheiro. A multidão já está impaciente,
quando finalmente o espetáculo começa. Uma fileira de condenados, todos
acorrentados, caminham por entre a massa eufórica até o local em que deverão
receber o merecido castigo. À medida que caminham, recebem todo tipo de
insultos. São todos hereges. Pessoas perigosas para a Santa e Madre Igreja
Católica. Foram condenadas pelo tribunal do Santo Ofício por práticas de bruxaria,
satanismo e outras formas de negação do sacrossanto poder da Igreja.
Vai
começar o espetáculo. Alguns dos condenados são “agraciados” com a morte na
fogueira, mais rápida e menos dolorosa, porque, durante o processo, em algum
momento, contribuíram para o para o bom andamento do julgamento ou delataram
outros hereges. Outras, mais reticentes, recebem outros tipos de tortura, mais
dolorosas, como o empalamento[1], a
tortura na Roda do Despedaçamento[2] ou
a serra[3].
Eram práticas comuns aos Autos de Fé, e a multidão assistia em êxtase a esses
espetáculos de horror. Se, como disse Rosseua, “o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”, então esses
espetáculos públicos eram uma prova irrefutável dessa “corrupção” do ser
humano.
O
episódio narrado acima bem que poderia ter saído de um filme de ficção ou de um
livro, mas infelizmente, para espanto de alguns e revolta de outros, embora a
narração aqui seja um relato imaginativo de minha parte, descreve muito bem o
que acontecia nos chamados Autos de Fé, promovidos pela Igreja Católica para
punir supostos hereges. E o que mais chama a atenção nisso tudo não é o ato em
si, mas o deleite do ser humano em assistir a tais atos. E neste caso, o
condenado não podia morrer antes da tortura final. O público ficava enfurecido,
vaiava e isso praticamente acabava com a festa.
Deleite
esse que se repete a cada dia em nossa moderna sociedade, só que de uma forma
um pouco menos explícita do que os espetáculos de horror da Idade Média.
Estamos falando dos milhares de casos policiais que inundam os meios de
comunicação todos os dias ao redor do mundo. E, sem trocadilhos, quanto mais
bizarro o caso, mais atiça a curiosidade do público comum.
O
cinema, que está sempre na esteira dos acontecimentos, uma vez que, uma de suas
definições diz respeito à “imitação da realidade”, não perdeu tempo. Tratou de
colocar essa “realidade” na tela grande. Foi assim que filmes como Cidade de Deus, Tropa de Elite e mais recentemente Ônibus 174 conquistaram importante papel nas salas de cinema do
mundo inteiro.
No entanto, dramaturgicamente falando, Ônibus 174 tem um diferencial a mais nessa teia de reconstruções da realidade brutal de nossa sociedade. Embora os filmes citados anteriormente tenham seus argumentos baseados em fatos reais, o filme de José Padilha é, efetivamente, o fato real, filmado e retransmitido para quem quiser ver. O incidente em questão aconteceu no dia 12 de junho de 2000 no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Um rapaz de 21 anos, chamado Sandro do Nascimento, assaltante, drogado, com várias passagens pela polícia, invadiu um ônibus que fazia a linha Central-Gávea e manteve vários reféns sob a mira de um revólver por quase cinco horas. Em tempos de globalização, o “espetáculo” foi transmitido ao vivo para o mundo inteiro. Aquela tarde, milhões de pessoas se amontoaram em frente aos aparelhos de televisão para acompanhar o desfecho do assalto frustrado. Algumas tiveram o “privilégio” de acompanhar tudo de perto, bem próximo ao ônibus, enquanto a polícia tentava, sem sucesso, dissuadir Sandro (que até aquele momento era chamado de Sérgio) de seu infausto intento. Só depois de muito tempo, e já com uma vítima “supostamente” morta (descobriu-se depois que, tanto o tiro que Sandro teria dado em uma das reféns, quanto os gritos desesperados dos cativos, eram encenações, na maioria dos casos, feitas a pedido do próprio seqüestrador), é que Sandro resolveu deixar o ônibus. Mais uma vez sua atitude surpreendeu os policiais, que acabaram agindo precipitadamente, fato que resultou na morte de uma das reféns, a professora Geisa Firmo Gonçalves. Como se sabe, o assaltante escapou ileso da tentativa de ser abatido por um policial da força de elite da Polícia Militar, mas foi morto por sufocamento dentro do camburão que o conduziria até o distrito policial.
No entanto, dramaturgicamente falando, Ônibus 174 tem um diferencial a mais nessa teia de reconstruções da realidade brutal de nossa sociedade. Embora os filmes citados anteriormente tenham seus argumentos baseados em fatos reais, o filme de José Padilha é, efetivamente, o fato real, filmado e retransmitido para quem quiser ver. O incidente em questão aconteceu no dia 12 de junho de 2000 no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Um rapaz de 21 anos, chamado Sandro do Nascimento, assaltante, drogado, com várias passagens pela polícia, invadiu um ônibus que fazia a linha Central-Gávea e manteve vários reféns sob a mira de um revólver por quase cinco horas. Em tempos de globalização, o “espetáculo” foi transmitido ao vivo para o mundo inteiro. Aquela tarde, milhões de pessoas se amontoaram em frente aos aparelhos de televisão para acompanhar o desfecho do assalto frustrado. Algumas tiveram o “privilégio” de acompanhar tudo de perto, bem próximo ao ônibus, enquanto a polícia tentava, sem sucesso, dissuadir Sandro (que até aquele momento era chamado de Sérgio) de seu infausto intento. Só depois de muito tempo, e já com uma vítima “supostamente” morta (descobriu-se depois que, tanto o tiro que Sandro teria dado em uma das reféns, quanto os gritos desesperados dos cativos, eram encenações, na maioria dos casos, feitas a pedido do próprio seqüestrador), é que Sandro resolveu deixar o ônibus. Mais uma vez sua atitude surpreendeu os policiais, que acabaram agindo precipitadamente, fato que resultou na morte de uma das reféns, a professora Geisa Firmo Gonçalves. Como se sabe, o assaltante escapou ileso da tentativa de ser abatido por um policial da força de elite da Polícia Militar, mas foi morto por sufocamento dentro do camburão que o conduziria até o distrito policial.
Embora
com ressalvas, o cerco ao ônibus 174 e o espetáculo de horror mórbido
proporcionado pelos Autos de Fé da “Santa” Inquisição na idade média, têm uma
certa ligação. Ambos são espetáculos em que o ser humano mostra a sua pior
face. Ambos são espetáculos públicos. Em ambos, a tragédia é iminente. Mas a
pergunta que se deve fazer aqui é: o que leva o ser humano a se sentir atraído
pela miséria do outro? Será que isso é uma forma de auto-expiação? Será que
esse é um espetáculo catártico, como afirma a teoria aristotélica para explicar
o prazer do homem grego pela tragédia? A resposta a isso pode ser (e é) um
pouco mais complexa, e eu não pretendo respondê-la aqui, pois isso requereria
pesquisas muito aprofundadas sobre a psicologia humana. O que pretendo
despertar com esse artigo é simplesmente um questionamento acerca dessas
questões.
Ademais,
o sentimento despertado pelo documentário de José Padilha é um tanto quanto
incômodo para nós. Escancara para toda a sociedade os problemas que, muitas
vezes, fica apenas na periferia das grandes cidades. Vez ou outra esses
problemas ultrapassam essa delicada fronteira e chegam até as camadas menos
pobres da população, como foi o caso de Sandro do Nascimento. Acredito que é
isso que acaba por incomodar mais do que qualquer outra coisa. José Padilha não
tenta colocar a culpa nessa ou naquela instituição. Não procura afirmar nem
negar que o sistema político atual cria esse tipo de situação. Ele, como um bom
documentarista, apenas expõe os fatos, investiga, instiga. Mostra como um jovem
da periferia se transforma em um bandido perigoso chamado Sandro do Nascimento.
Expõe sua trajetória; investiga seus motivos; faz relações. Enfim, tudo que um
bom documentário deve ter, a meu ver.
Há um
outro documentário que segue essa mesma linha do “oportunismo” desse boom da violência urbana desenfreada. No
entanto, diferentemente do filme de José Padilha, Manda Bala não diz a que veio. O cineasta Jason Kohn se pretende
explicar a origem da corrupção no Brasil mas, como norte-americano que é, não
conhecedor da verdadeira realidade brasileira, se perde pelo caminho que se
propôs traçar. Usa de falsos argumentos, manipula, lança mão de estatísticas
defasadas e o descrédito de suas testemunhas são mais do que evidentes.
Mas de
uma coisa podemos ter certeza: outros “José Padilhas” irão aparecer; outros
“Jason Kohns” também, afinal de contas a violência e a curiosidade das pessoas
por esse tema estão longe de ser esgotados. Desde que o mundo é mundo que o
homem sente um prazer mórbido pela desgraça dos outros. E isso faz parte de
nossa personalidade. Infelizmente.
[1] O condenado é empalado pelo ânus e
deixado à mercê da força da gravidade.
[2] Flagelação em que o condenado é
amarrado a uma roda e suas juntas – pulsos, joelhos, tornozelos etc. - são
escoradas por uma base de madeira; em seguida, o algoz desfere violentos golpes
de marreta sobre essas juntas, despedaçando-as.
[3] O sujeito era serrado ao meio a partir
do ânus.
*Artigo publicado na Chasqui – Revista de literatura latinoamericana, volume 38, número 1, maio de 2009. p. 232-234. Arizona State University. Tempe, Arizona, USA.