sexta-feira, 3 de maio de 2013

ÔNIBUS 174


Cronologia do espetáculo de horror
Por Guto Rodriguess*
O dia está quase amanhecendo na pequena província de Toledo, parte central da Espanha. O ano é 1492. É um domingo frio de abril. Pessoas de todas as cidades da Espanha já começam a se amontoar em torno da pequena praça central da cidade. Carpinteiros terminam os últimos preparativos para a “festa” que acontecerá logo mais. São pessoas de todas as idades. Homens, mulheres e crianças. Alguns caminharam algumas centenas de quilômetros para estar ali aquele dia. Inquietam-se ao lado do palco principal, à espera do “espetáculo”.
Quando o Sol já está a pique, o número de pessoas chega a alguns milhares. A praça está completamente lotada. Como nos dias de hoje, há os “vendedores ambulantes”, negociantes de todos os tipos, que aproveitam o evento público, que é gratuito, para fazer algum dinheiro. A multidão já está impaciente, quando finalmente o espetáculo começa. Uma fileira de condenados, todos acorrentados, caminham por entre a massa eufórica até o local em que deverão receber o merecido castigo. À medida que caminham, recebem todo tipo de insultos. São todos hereges. Pessoas perigosas para a Santa e Madre Igreja Católica. Foram condenadas pelo tribunal do Santo Ofício por práticas de bruxaria, satanismo e outras formas de negação do sacrossanto poder da Igreja.
Vai começar o espetáculo. Alguns dos condenados são “agraciados” com a morte na fogueira, mais rápida e menos dolorosa, porque, durante o processo, em algum momento, contribuíram para o para o bom andamento do julgamento ou delataram outros hereges. Outras, mais reticentes, recebem outros tipos de tortura, mais dolorosas, como o empalamento[1], a tortura na Roda do Despedaçamento[2] ou a serra[3]. Eram práticas comuns aos Autos de Fé, e a multidão assistia em êxtase a esses espetáculos de horror. Se, como disse Rosseua, “o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”, então esses espetáculos públicos eram uma prova irrefutável dessa “corrupção” do ser humano.
O episódio narrado acima bem que poderia ter saído de um filme de ficção ou de um livro, mas infelizmente, para espanto de alguns e revolta de outros, embora a narração aqui seja um relato imaginativo de minha parte, descreve muito bem o que acontecia nos chamados Autos de Fé, promovidos pela Igreja Católica para punir supostos hereges. E o que mais chama a atenção nisso tudo não é o ato em si, mas o deleite do ser humano em assistir a tais atos. E neste caso, o condenado não podia morrer antes da tortura final. O público ficava enfurecido, vaiava e isso praticamente acabava com a festa.
Deleite esse que se repete a cada dia em nossa moderna sociedade, só que de uma forma um pouco menos explícita do que os espetáculos de horror da Idade Média. Estamos falando dos milhares de casos policiais que inundam os meios de comunicação todos os dias ao redor do mundo. E, sem trocadilhos, quanto mais bizarro o caso, mais atiça a curiosidade do público comum.
O cinema, que está sempre na esteira dos acontecimentos, uma vez que, uma de suas definições diz respeito à “imitação da realidade”, não perdeu tempo. Tratou de colocar essa “realidade” na tela grande. Foi assim que filmes como Cidade de Deus, Tropa de Elite e mais recentemente Ônibus 174 conquistaram importante papel nas salas de cinema do mundo inteiro.
No entanto, dramaturgicamente falando, Ônibus 174 tem um diferencial a mais nessa teia de reconstruções da realidade brutal de nossa sociedade. Embora os filmes citados anteriormente tenham seus argumentos baseados em fatos reais, o filme de José Padilha é, efetivamente, o fato real, filmado e retransmitido para quem quiser ver. O incidente em questão aconteceu no dia 12 de junho de 2000 no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Um rapaz de 21 anos, chamado Sandro do Nascimento, assaltante, drogado, com várias passagens pela polícia, invadiu um ônibus que fazia a linha Central-Gávea e manteve vários reféns sob a mira de um revólver por quase cinco horas. Em tempos de globalização, o “espetáculo” foi transmitido ao vivo para o mundo inteiro. Aquela tarde, milhões de pessoas se amontoaram em frente aos aparelhos de televisão para acompanhar o desfecho do assalto frustrado. Algumas tiveram o “privilégio” de acompanhar tudo de perto, bem próximo ao ônibus, enquanto a polícia tentava, sem sucesso, dissuadir Sandro (que até aquele momento era chamado de Sérgio) de seu infausto intento. Só depois de muito tempo, e já com uma vítima “supostamente” morta (descobriu-se depois que, tanto o tiro que Sandro teria dado em uma das reféns, quanto os gritos desesperados dos cativos, eram encenações, na maioria dos casos, feitas a pedido do próprio seqüestrador), é que Sandro resolveu deixar o ônibus. Mais uma vez sua atitude surpreendeu os policiais, que acabaram agindo precipitadamente, fato que resultou na morte de uma das reféns, a professora Geisa Firmo Gonçalves. Como se sabe, o assaltante escapou ileso da tentativa de ser abatido por um policial da força de elite da Polícia Militar, mas foi morto por sufocamento dentro do camburão que o conduziria até o distrito policial.
Embora com ressalvas, o cerco ao ônibus 174 e o espetáculo de horror mórbido proporcionado pelos Autos de Fé da “Santa” Inquisição na idade média, têm uma certa ligação. Ambos são espetáculos em que o ser humano mostra a sua pior face. Ambos são espetáculos públicos. Em ambos, a tragédia é iminente. Mas a pergunta que se deve fazer aqui é: o que leva o ser humano a se sentir atraído pela miséria do outro? Será que isso é uma forma de auto-expiação? Será que esse é um espetáculo catártico, como afirma a teoria aristotélica para explicar o prazer do homem grego pela tragédia? A resposta a isso pode ser (e é) um pouco mais complexa, e eu não pretendo respondê-la aqui, pois isso requereria pesquisas muito aprofundadas sobre a psicologia humana. O que pretendo despertar com esse artigo é simplesmente um questionamento acerca dessas questões.
Ademais, o sentimento despertado pelo documentário de José Padilha é um tanto quanto incômodo para nós. Escancara para toda a sociedade os problemas que, muitas vezes, fica apenas na periferia das grandes cidades. Vez ou outra esses problemas ultrapassam essa delicada fronteira e chegam até as camadas menos pobres da população, como foi o caso de Sandro do Nascimento. Acredito que é isso que acaba por incomodar mais do que qualquer outra coisa. José Padilha não tenta colocar a culpa nessa ou naquela instituição. Não procura afirmar nem negar que o sistema político atual cria esse tipo de situação. Ele, como um bom documentarista, apenas expõe os fatos, investiga, instiga. Mostra como um jovem da periferia se transforma em um bandido perigoso chamado Sandro do Nascimento. Expõe sua trajetória; investiga seus motivos; faz relações. Enfim, tudo que um bom documentário deve ter, a meu ver.
Há um outro documentário que segue essa mesma linha do “oportunismo” desse boom da violência urbana desenfreada. No entanto, diferentemente do filme de José Padilha, Manda Bala não diz a que veio. O cineasta Jason Kohn se pretende explicar a origem da corrupção no Brasil mas, como norte-americano que é, não conhecedor da verdadeira realidade brasileira, se perde pelo caminho que se propôs traçar. Usa de falsos argumentos, manipula, lança mão de estatísticas defasadas e o descrédito de suas testemunhas são mais do que evidentes.
Mas de uma coisa podemos ter certeza: outros “José Padilhas” irão aparecer; outros “Jason Kohns” também, afinal de contas a violência e a curiosidade das pessoas por esse tema estão longe de ser esgotados. Desde que o mundo é mundo que o homem sente um prazer mórbido pela desgraça dos outros. E isso faz parte de nossa personalidade. Infelizmente.



[1] O condenado é empalado pelo ânus e deixado à mercê da força da gravidade.
[2] Flagelação em que o condenado é amarrado a uma roda e suas juntas – pulsos, joelhos, tornozelos etc. - são escoradas por uma base de madeira; em seguida, o algoz desfere violentos golpes de marreta sobre essas juntas, despedaçando-as.
[3] O sujeito era serrado ao meio a partir do ânus.
*Artigo publicado na Chasqui – Revista de literatura latinoamericana, volume 38, número 1, maio de 2009. p. 232-234. Arizona State University. Tempe, Arizona, USA.